Textos e adaptações

SEGUNDO SACRIFÍCIO: UM EXEMPLO PARA JOÃO VÁRIO

Vamos esperar aqui
até que possamos provar
os rins e o coração do povo.

Sim, porque, com efeito, conhecem
os seus tempos determinados menos que
a cegonha no céu, menos que a rola
e o grou e a andorinha que observam
o tempo da sua arribação.

A terra estende-se à nossa frente
com a sua voracidade e seus frios,
furta-se ao diálogo mas acumula seus monólogos,
ouvimo-la em dias pares.

A jornada, o aniversário, o arrependimento.
Tal o alimento por baixo do alimento,
o alimento acima do alimento. Alimentissimamente.
Festa e espelho. A receção,
o sucesso, o tempo. Tempo grande.

E porque dirão que estas coisas são fugazes,
mas estiveram connosco durante
todo o tempo do fogo à beira do fogo,
é assim que o pêndulo determina o remorso,
não porque sejamos os filhos mas os hóspedes.

Direção Artística Herlandson Duarte 
Dramaturgia
José Pinto e Herlandson Duarte, a partir de “Exemplos” de João Vário
Adaptação
José Pinto
Interpretação
Cátia Terrinca, Nádia Yracema e Rita Couto
Música e Sonoplastia
N’du Carlos
Direção Técnica e Desenho de Luz
João P. Nunes 
Design
João P. Nunes
Construção e Apoio à Montagem
Mano Preto e Álvaro Soares Cardoso
Figurino
Mizé Varela e Ghislene Tavares
Participação especial
Fladu Flá
Apoio à Produção
Nedine Tavares Mendes e Jocy Vera Brito de Pina Barbosa
Produção
UMCOLETIVO
Coprodução
Direção Geral das Artes e das Indústrias Criativas de Cabo Verde e Lendias d’Encantar
Apoios
DGartes, Município de Elvas, CCP da Praia, Nascimento & Filhos, Cool Guest House Hostel

Lido multiVERSES 00, Portugal, 2021
Estreado Palácio da Cultura Ildo Lobo, Cabo Verde, 2021

JúliA

ANA: Era uma boa altura de sair daqui. Libertava-me, parece que os problemas são mais e não consigo tempo para nada.
MARINA: Ah! Quando digo que vou, conta comigo.
HELENA: Não posso gastar dinheiro.
Hotel baratucho.
Não sou paga pela companhia nem pelo banco.
As facilidades são sempre para quem está alto.
MARINA: Não me parece que isso seja justo.
CÁTIA: Acreditas que um novo napoleão vai para o poder!?
ANA: O que é que seria suposto?
HELENA: E o que é suposto que se passe aqui, entre nós?
MARINA: Tu conheces bem a tua vida, mas o que é suposto que se passe aqui é que eu te conte a minha estória.
Pagaste para assistir à minha revelação.
Podias ter-me perguntado lá fora simplesmente Qual é a tua estória
CÁTIA: Ter-te-ia contado, sem hesitar, se estivesse num bom dia.

Criação Cátia Terrinca e Daniel Gorjão
Interpretação Ana Sampaio e Maia, Cátia Terrinca, Helena Baronet e Marina Leonardo
Dramaturgia José Pinto, a partir de ‘Júlia’, de Rúben A.
Sonoplastia Diogo Rodrigues
Desenho de luz e Espaço Cénico João P. Nunes 
Figurino Suzana Alves da Silva
Apoio ao Movimento Ana Jezabel
Registo Vídeo João Filipe
Operação de Câmara Henrique Montalvão e João Filipe
Direção de Produção Tânia Baldé
Produção UMCOLETIVO 

Estreado RTP 2, 2020

ONDE VIVE BLIMUNDO

CONTEMPLADORA: Ouviste?
VIAJANTE: Ouvi o quê?
CONTEMPLADORA: Espera…
VIAJANTE: Espero?
CONTEMPLADORA: Pelo próximo.
VIAJANTE: Próximo?
CONTEMPLADORA: Sim.
VIAJANTE: Pelo próximo quê?
CONTEMPLADORA: Pelo próximo eco.
VIAJANTE: Eco?
CONTEMPLADORA: E-c-o. Eco.
VIAJANTE: Queres que eu espere por um eco?
CONTEMPLADORA: Não é um eco qualquer.

*

CONTEMPLADOR: Bô uvi?
VIAJANTE: M uvi o kê?
CONTEMPLADOR: Esperá…
VIAJANTE: Esperá?
CONTEMPLADOR: Pa próxim.
VIAJANTE: Próxim?
CONTEMPLADOR: Sim.
VIAJANTE: P próxim kê?
CONTEMPLADOR: Pa próxim eco.
VIAJANTE: Eco?
CONTEMPLADOR: E-c-o. Eco.
VIAJANTE: Bô krê k m sperá pé um eco?
CONTEMPLADOR: Ka ê um eco qualquer.

Texto + tradução para crioulo completos publicados Revista Virada, EUA e Portugal, 2020

Estreado Antena 2, Portugal, e Rádio Morabeza, Cabo Verde, 2020

TOCA: OITO POEMAS DE AMOR E UMA CANÇÃO ANGUSTIADA

Amor é palavra mais estranha que a palavra sonho
e a gravidez noturna: a noite mais longa da vida de uma mãe.
Passaram por mim três estações
e ninguém esperou como eu esperei: um filho é lento.
Lento, doce, meigo, exército de coisas desconhecidas que conquistam,
que se alimentam, um mapa de guerra
com letra f de fado
um filho faz uma mãe nascer pra dentro.

De encontro ao luto perpétuo, a vida é inevitável.
Repito: a vida é inevitável.
Vi os ossos e a carne de que são feitos os diamantes
o corpo do milagre que convoca uma raiz íntima e cósmica
o teu coração a cento e cinquenta batidas por minuto
mais do que trance
a primeira vez que fui futuro.
Deixei de ser eu e nasci dum outro ângulo
a partir do olho do espírito
desde o início do tempo para sempre.
O meu lugar já não era o meu lugar.
O meu lugar foi o infinito cravado no cimento dos dias.
O corpo onde me movi foi tempo.

Criação e interpretação Cátia Terrinca
Dramaturgia e texto José Pinto
Cenografia Bruno Caracol
Sonoplastia Diogo Rodrigues
Desenho de luz João P. Nunes
Fotografia Alípio Padilha
Produção UMCOLETIVO
Apoio à criação Ricardo Guerreiro Campos
Apoio Teatro O Bando, FIAR

Estreado Teatro O Bando, Portugal, 2020
Livro TOCA: oito poemas de amor e uma canção angustiada

EU PEDI-LHE AJUDA E ELA TIROU-ME UMA FOTOGRAFIA

AVÓ TRAFICANTE: Uma mãe tem um filho… Ele namorava uma menina havia cinco anos. A menina frequentava a casa dos pais do namorado e era já como se fosse da família. Os fins de semana eram passados com a família do namorado… Bem, um dia a família foi, como de costume, dormir fora da cidade, levando a namorada, claro. Na manhã seguinte, a mãe viu a menina diferente, levantava-se e deitava-se novamente. Então, a mãe dirigiu-se à menina e disse “Estás diferente”. Ela respondeu “Não é nada”. A mãe “Que estás estranha, estás”. A menina disse que estava grávida, mas que tencionavam abortar. A mãe aconselhou “Pensem bem antes de lá chegar”. Chamou depois o filho para conversar com ele e a decisão era a mesma. A partir dali começou a luta entre a mãe e o casal. Passaram poucos dias e a mãe anunciou ao filho “Sabes uma coisa? Deem a essa criança o direito de nascer. E quando ela nascer, vocês dão o preço e eu compro a criança”.

(Quatro jovens comem donuts com chocolate)

CRIANÇA COMPRADA: Hoje sonhei que a psicóloga lá do sítio onde faço voluntariado me tinha chamado cabra. Só se apercebeu de quem eu era quando eu lhe perguntei se sabia quem eu sou e pediu-me desculpa.
AMIGA DA CRIANÇA COMPRADA: E disse-te quem és tu?

Texto, direção e dramaturgia José Pinto
Interpretação
Aida Penha, Aldina da Luz, Carolina Costa, Cibele Neves, Hermínia Graça, Márcia Brito, Maria dos Santos, Maria Lopes, Regina Fortes, Roberto Fortes e Rosalina Lima
Cenografia e desenho de luz
José Pinto
Música
André Faustino e Rubina Góis (2jack4u)
Acompanhamento crítico
Cátia Terrinca
Produção txon-poesia

Estreado Centro Cultural do Mindelo, Cabo Verde, 2019

A GRANDE PARÓDIA

(Guitarrista toca)

ARTEZIA: Queridos irmãos. Queridas irmãs. Caros amigos. Caras amigas. Amáveis concidadãos. Amáveis concidadãs. Senhoras e senhores. Prezada assembleia. Diletos delegados. Diletas delegadas. Excelentíssimo conselho superior. Suprema instância. Bem vindos e bem vindas à grande paródia! Na verdade, pensámos que só vinham os familiares. (Aponta para familiares seus na plateia) Fale-se menos bem da prima emigrada, faz parte. Família é família: não falha. Esperávamos menos gente, mas não é caso para alarme. A comissão organizou a sala ao detalhe. Prometemos que seria a grande paródia! Não faltam cadeiras. (Verifica se toda a gente tem assento) Parecem confortáveis: afinal vieram ao teatro. Não se prendam por nós. Desfrutem da grande paródia ao vosso gosto: a sala é espaçosa. Gosto em vê-los em boa forma física. Não choram, não se queixam nem se indignam. Que saúde! Nós não gostamos de gente que estraga. Nem achamos que viessem estragar. Qual o sentido? Jamais desconfiamos das vossas elevadas intenções. Uma lançou a questão ao ar, mas não fui eu! Nenhuma apanhou a questão que foi lançada. E o que não se apanha nesta terra, depressa escapa. Que é que eu dizia? Deve ser da idade… Ah! Prometemos que ia ser a grande paródia! Não compramos Rin Ben porque dizem que é Ray Ban. (Leva as mãos à boca) Oh, falei em compras. Perdão. Não sei o que digo. Que dia é hoje? A culpa não é minha. Disseram para eu ‘fazer sala’. Não temos livro de reclamações, só de elogios. Estou a fazer o que me pediram. (Volta-se para Guitarrista) E tu, que estás a fazer?
GUITARRISTA: A tocar guitarra.
ARTEZIA: A tocar guitarra?
GUITARRISTA: Não vês que estou a tocar guitarra?
ARTEZIA: Não vejo a guitarra.
GUITARRISTA: Estou a tocar guitarra.

Criação coletiva com dramaturgia, texto e direção José Pinto
Interpretação Aldina da Luz, Carolina Costa, Érica Santos, Maria Cândida dos Santos, Maria de Fátima da Cruz, Maria de Fátima Moreira, Maria de Lourdes Fonseca, Maria José Fernandes e Regina Fortes

Estreado Academia Livre de Artes Integradas de Mindelo, Cabo Verde, 2018

ABRI OI

Destruição é um constante histórico. Ess crença ingénua de que nô pudia passa pa vida intacte t uni nôj. Nô meste abri oi.

Arte te permiti revela uke t gatxod.

Ene um questão de lumiá, mas OIÁ sombra.

Arte deve ser agente de destruição – e não um vítma circunstancial de História pa consumo cultural ou lavagem de dnher.

Arte deve atacá tud forma de poder constituíd, inclusive kel de própria arte: bronk, capitalista e patriarcal.

Arte deve ser próximo de experiência, de temp e de corp present. Nada diss te estod online.

Arte ene um domínio especializod. Iss é artesanato ou cátedra.

Expressão pessoal é fetiche. Autoria é mintira.

Kes mdjor intençon ka ta servi de nada. Consciência trankil é alienação.

Liberdade individual já passa de praze. Nô meste inventá ôte. Ka ta existi liberdade fora de coletive.

Vive é um invenção estética. Vive é um processe de demolição. ‘Ka bo aceita hábitos moda um cosa natural.’ Nada é natural.

Ka t existi resistência fora de criação. Ka t existi criação fora de resistência.

Dramaturgia e tradução para crioulo José Pinto, a partir de J.P. Cuenca
Revisão Márcia Freitas
Performer Hernany Lopes

Estreado txon-poesia, encontro internacional de poesia e poética em Mindelo, Cabo Verde, 2018